Viver uma nova fé exige de nós um passo fundamental, podemos entendê-lo como uma grande ousadia, uma coragem de nos jogar inteiramente em algo novo, sem garantias de que isso dará certo. Ousar é algo tão importante que é um dos pilares da magia.
Quando buscamos uma nova fé, decididos por nos afastar dos conceitos e dogmas monoteístas, precisamos entender que é necessário encontrar símbolos, práticas e uma cosmologia que possam entrar fundo na nossa psique para substituir a religião anterior. Isso também vale para os que já se diziam não praticantes, mas cresceram em famílias que frequentavam alguma igreja. Aliás, talvez isso valha para todos nós.
Nossa cultura está imersa na mitologia judaico-cristã, na ideia de um deus que é uma força paterna e masculina criadora e punitiva, e mesmo que a gente rejeite seus símbolos (a cruz, a bíblia, o diabo, a igreja, por exemplo), a estrutura foi absorvida de forma muito profunda, está arraigada. Podemos substituir a imagem de Deus, Jeová ou Alá por Buda, Marx, Freud, Jung, Einstein, Nietsche, ou qualquer outro profeta ou grande pensador (homem) que a gente endeuse, e a estrutura de entender a força e o logos masculino como mais divinos e superiores permanece intacta e alimentando o desequilíbrio que vivemos. Transformar isso em nós exige perseverança.
Essa busca exige pesquisa e estudo, mas se não houver uma troca verdadeira, um encontro da alma com novos símbolos que acordem algo profundo em nós, um novo entendimento e conexão com o que chamamos de Sagrado, no primeiro instante em que a coisa aperta, vamos nos refugiar exatamente no território conhecido previamente. É no encontro com nossa fragilidade, com nossa insegurança diante do destino e das circunstâncias, que pedimos socorro a forças numinosas que entendemos terem o poder de interferir de alguma forma a nosso favor. E esse grito de socorro vem de forma muito visceral, pois parte de um medo muito grande, e aprendemos quando pequenos que, quando temos um medo muito grande, a gente chama pela mãe ou pelo pai – nossos primeiros deuses talvez. Ou seja, os sistemas de símbolos precisam ser substituídos, não apenas rejeitados, do contrário “nos momentos de crise, confusão ou derrota, a mente regressará para estruturas conhecidas”, como diz Carol Christ em Womanspirit Rising, livro de 1979.
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Eu fui criada agnóstica, mas sempre demonstrei interesse por espiritualidade, embora isso não fosse estimulado na minha família. Por vontade própria acabei indo para a igreja católica, afinal eu não conhecia muita coisa e aquela opção estava prontamente disponível para um contato com algo sagrado. Escolhi ser batizada, e isso ocorreu quando eu tinha 13 anos. Mas por ali mesmo eu já lia muita coisa esotérica, estava ligada no movimento New Age, e, em seguida comecei uma busca pelo ocultismo. Isso foi em 1987, 1988, junto da famosa convergência harmônica* que se manifestou nos céus.
Mesmo caminhando no ocultismo e aprendendo mais adiante sobre xamanismo sul-americano que tem Pachamama como Deusa, eu seguia não sabendo direito para quem rezar quando precisava de ajuda do plano espiritual. Quando me entendi pagã, passei a cultuar a Deusa, mas ainda assim usei por muito tempo a ideia de consciência cósmica, energias divinas, passei para a Grande Mãe, e por aí vai. Mas os novos conceitos e símbolos demoraram a encaixar de forma inabalável.
Foi só a partir de 2003 que encontrei um nome divino para me alinhar. Uma força numinosa que entendi ser uma mãe divina para mim, a quem me dediquei e a quem sabia que poderia recorrer. E, ainda assim, a primeira vez em que me senti verdadeiramente vulnerável e correndo um grande perigo e rezei fervorosamente para Sekhmet pedindo ajuda, me senti muito estranha – como se estivesse cometendo algum tipo de pecado, ou arriscando não receber ajuda nenhuma pois não estava pedindo ao meu antigo deus, meu conhecido para quem tantos Pai Nosso eu rezara por anos a fio. Foi um instante transformador, exigiu coragem, exigiu coragem diante de uma tremenda adversidade que eu estava atravessando, um instante em que precisei me sentir acompanhada por algo maior e pedi a uma divindade muito antiga, mas nada ortodoxa para os nossos tempos.
E a partir dali ficou fácil. A substituição foi realmente feita, e eu me soube politeísta no meu cerne, nas profundezas do meu ser.
Então saiba que esse processo pode levar muito tempo, e vai exigir muita audácia da sua parte. Não é fácil romper com algo que nos é ensinado por todos os lados desde a infância e toda uma cultura na qual estamos mergulhados, mas uma vez feito isso, nossa libertação tem um sabor maravilhoso e inigualável.
Nem todo mundo tem necessidade de trocar de fé, mas para aqueles que têm, alinhar sua religiosidade verdadeiramente com os desejos da alma é um sentimento de estar em casa, encontrar seu lugar.
*a convergência harmônica foi um alinhamento astrológico que ocorreu em agosto de 1987 que muitos entendem como um momento em que propiciou o despertar espiritual de um número muito grande de pessoas.