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Lua Branca e Lua Vermelha

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Imagem da artista, escritora e curadora Miranda Gray usada em seus trabalhos do feminino como o curso Red Moon e a Bênção do Útero

Mulher é um bicho esquisito. Já ouvi isso muitas vezes. Não apenas somos “de lua”, como já ouvi dizerem que é preciso “temer um bicho que sangra três dias sem parar e não morre”. Sem dúvida, só esse motivo já basta para deixar os homens desconfiados desses nossos mistérios do sangue.

Os mistérios da natureza fêmea mamífera humana são muitos. Acrescente-se ao sangramento (que em média varia de 10 a 80 ml por ciclo) o fato de que, em sociedades antigas, quando não havia luz elétrica, as mulheres sangravam todas juntinhas na lua nova. E ficavam todas recolhidas em tendas, segundo alguns relatos que sobreviveram, sangrando sobre a terra ou a palha, porque, afinal, não dá para ficar se locomovendo com sangue escorrendo pelas pernas num período em que ainda não havia nem toalhinhas, nem absorventes, nem ob, nem diva cup. As mulheres cíclicas de então ficavam nessas “tendas vermelhas” e eram atendidas pelas meninas mais novas e pelas mulheres mais velhas, experiências que ainda não chegaram ou que já passaram por essa consonância da lua com o útero. Os homens não visitavam essa redoma protetora. Mais um mistério. Que raios se passava lá dentro? Com todas as mulheres reunidas? E era sempre justo quando a lua sumia do céu que a maioria das mulheres cíclicas parava de circular pela aldeia e ia se enfiar numa cabana para sangrar junto a suas irmãs de tribo.

Digo a maioria porque a sociedade sempre conheceu mulheres do contra, as que tinham o ciclo inverso e sangravam nos dias da lua cheia: as mulheres do Ciclo da Lua Vermelha. Essas não acompanhavam a energia crescente e decrescente da lua com seus úteros,elas circulavam normalmente pela aldeia e ajudavam quando as outras estavam encerradas na tenda vermelha, porém sumiam de circulação justamente na plenitude lunar, quando todos faziam festas para a deusa brilhante da noite, que abençoava afastando a escuridão, exacerbando a sensibilidade, provocando partos, subindo marés e indicando a fertilidade das mulheres que acompanhavam o ciclo da lua branca.

Não pensem que as mulheres “primitivas” não faziam ideia de quando estavam férteis. Não pensem. É subestimar demais nossa capacidade de observação e até mesmo a inteligência corporal animal. Tá certo que os homens estavam ocupadíssimos amarrando umas pedras lascadas nuns pedaços de pau para fazer machadinhas e se reunindo em grupos para derrubar o mamute e garantir o sustento da tribo, mas pressupor que a parcela da espécie que ficava parindo bebês, cuidando de crianças e velhos e desenvolvendo melhorias para a comunidade  através de experimentos químicos super complexos como curtir peles e couros, transformar alimentos através do fogo e da cocção e a descoberta de ervas curativas não tinha sequer noção do seu próprio ciclo corporal é um pouco tolo.

Para comprovar isso, taí a Vênus de Laussel, também chamada de “Femme a la corne” um relevo esculpido em calcárioVenus de Laussel ainda no paleolítico, entre 29 e 22 mil anos atrás, que, como tantas outras expressões encontradas dos humanos daquele período da nossa história, retrata uma mulher de medidas exuberantes (ou seja, muito fêmea e redondinha!), sem detalhes de rosto, mas com os seios,  as coxas, o ventre e os genitais bem desenhados. Essa, que foi encontrada em uma caverna na França, tem a mão esquerda sobre o ventre, e a direita segurando um objeto em forma de meia-lua ou chifre, com treze marcações, para o qual ela aparenta estar olhando. Uma das interpretações mais comuns feitas pelos estudiosos é de que a figura seja uma deusa da fertilidade ou uma sacerdotisa xamânica, segurando o que seria  uma espécie de calendário rudimentar, marcando o número de lunações em um ano. E quem mais tem treze “luas”em um ano? Quem acompanha as lunações com sangramentos mensais?  Aí está… A Vênus de Laussel, por ser uma figura feminina que segura essa lua  com as treze ranhuras, demonstra claramente que era sabido que a mulher tinha treze sangramentos em um ciclo solar anual. Para reforçar essa ideia, a imagem ainda por cima tem vestígios de ocre vermelho, indicando sangue.

Esse pigmento vermelho, trata-se de um óxido de ferro mineral usado em pinturas e tingimentos,  é também encontrado em um número muito grande de sepultamentos e tumbas do período pré-histórico, inclusive no nordeste brasileiro. É notável a quantidade de achados arqueológicos de pessoas enterradas em decúbito lateral (de lado) e posição levemente encolhida, quando não claramente fetal, em diversos continentes da Terra, com seus restos mortais, ossos, ou mesmo fibras que envolviam os corpos cobertos com esse pigmento avermelhado. Uma das interpretações é que esses povos claramente entendiam que, assim como todos viemos de um útero vermelho e nascemos envoltos em sangue, da mesma forma, também nos ritos fúnebres, somos devolvidos envoltos nesse sangue simbólico ao útero da terra, ao útero da natureza, a Grande Mãe, que nos recebe de volta em seu ventre que nos transformará e nos parirá em um outro mundo ou plano existencial.

Se de uma mãe viemos, a uma mãe voltaremos.

A sintonia dos nossos ciclos, mesmo como mulheres modernas usando apps de receitas e vendo séries no netflix, ainda tende a acompanhar a lua, seja em consonância, férteis na lua cheia e sangrando na lua nova, ou expressando a energia oposta. São os chamados Ciclos da Lua Branca e da Lua Vermelha.

Ao longo da vida oscilamos entre os dois, passeando de um ponto ao outro dependendo de como estamos com nossa energia: se mais “maternas” e concordantes com expectativas tradicionais de gênero sobre a passividade e acolhimento femininos (características muito louvadas em nós pela sociedade patriarcal), ou se estamos indo contra a correnteza, tentando criar um novo caminho, testando novas águas solitárias, nos colocando à margem dos papéis prontos e sendo imprevisíveis, amazonas, misteriosas e indomáveis.

É muito interessante observar os movimentos do nosso ventre nesse sentido para entendermos a vontade do corpo e o que ele nos revela sobre a energia que nos interessa *de fato* em cada momento.

Se você não está menstruando nem na lua nova nem na cheia exatamente, é porque seu ciclo está oscilando rumo a uma direção ou outra. Fique atenta para acompanhar para onde ele aponta.

A Vênus de Laussel, do alto de seus 45 cm, nos mostra que sempre soubemos das coisas, o importante é prestar atenção e valorizar a sabedoria que nos pertence desde sempre.

**esse texto nasceu como parte da preparação para o curso Ativando o Caldeirão de Poder Feminino. Para um dia de vivências ritualísticas e papos profundos sobre a essência de nossa natureza cíclica e sacralidade femininas, entre em contato comigo para saber das próximas datas ou organizar uma turma na sua região.

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A Grande Mãe Cósmica

Estou finalmente lendo o clássico: The Great Cosmic Mother, Rediscovering the Religion of the Earth, escrito por Monica Sjöö e Barbara Mor, uma das grandes (também em número de páginas) obras que ajudam a entender melhor as origens do culto ao divino feminino e suas raízes ancestrais na experiência espiritual – e biológica – dos seres humanos.

Cada página traz informações relevantes, algumas são novas, mas na maioria, elas são, para mim, reafirmações e revalidações de outras, apanhadas em palestras, leituras e sacações daqui e dali. Já li muitos outros livros que inclusive citavam este em sua bibliografia, ou seja, é meio fonte de vários dos pensamentos e ideias que circulam nos meios pagãos.

Eu mesma levei muito tempo para me entender e me gostar sendo mulher. Demorei a apreciar o universo e  força do feminino. Cresci envelopada numa cultura mega patriarcal gaúcha e comprei bonito todos os ideais de competência, competitividade, força e rigidez do mundo masculino. Considerava minhas emoções uma fraqueza e reprimia boa parte delas, inclusive as ligadas a demonstração de afeto e abertura para criação de vínculos afetivos. Não é por menos que, para poder me reequilibrar, fiz biodança, bioenergética, terapia junguiana, rodas de cura xamânica e precisei virar atriz! O paganismo, mais voltado no meu caso para a celebração da Deusa, foi a cereja do bolo nesse meu processo de busca de valorização pessoal e entendimento do meu papel no mundo.

Mas é difícil mesmo superarmos tantas ideias já ultrapassadas que seguem agindo dentro de nós por estarem entranhadas na cultura e quiçá até em algum código genético que passamos de pais para filhos.

Por isso sempre vale lembrar que embora sejamos maioria em número, as mulheres ainda precisem ser tratadas com o status de minoria e terem órgãos de defesa, leis específicas e até um Dia Internacional para que consigam valer seus direitos – mínimos às vezes, dependendo de onde nos encontremos no nosso querido globo terrestre.

Globo terrestre, aliás, que é fêmea, enquanto Gaia (louvados sejam os cientistas James Lovelock e Lynn Margulis), com um oceano, que é feminino, inclusive segundo Darwin, de onde emergiu a vida. Ponto.

E ainda bem que agora também temos até o lance do DNA mitocondrial, que rastreia nossa origem até às primeiras mulheres africanas de onde todos nós viemos. E o DNA mitocondrial que pode ser rastreado, mesmo no homem, é dado a ele pela mãe, ou seja, pela linhagem feminina. Finalmente a ciência volta a reconhecer, em termos genéticos e biológicos, algo que já vivemos como espécie muito antigamente, durante as culturas matrilineares, e que os judeus ainda preservam até hoje: o conhecimento de que a mulher é quem transmite uma linhagem.

Como do paleolítico e do neolítico só restaram as pontas de flecha, de lança e outras ferramentas como martelos e enxadas primitivas, que podem ser expostos em museus, em geral é esquecido que o papel da mulher naquele mesmo período foi de fundamental importância para toda a evolução da humanidade. Enquanto os homens amarravam uma pedra num pedaço de pau e saíam para caçar, as mulheres estavam tecendo, fazendo cerâmica e aprendendo leis da química e da física através do ato de cozinhar, curtir o couro e descobrir plantas curativas.

Não estou menosprezando de maneira alguma o papel do homem, estou apenas buscando elevar e lembrar da importância do papel da mulher para várias das conquistas da nossa civilização humana. Pode parecer redundante, mas precisamos nos lembrar disso, porque a gente ainda esquece, e as mulheres seguem se diminuindo e se sentindo menos em várias instâncias que vejo por aí.

A arqueologia demonstra que os primeiros trinta mil anos do homo sapiens foram dominados pela celebração dos processos do feminino: menstruação, gravidez, dar a luz – tudo sempre ligado aos ciclos de fertilidade da terra também. Os ritos funerários, da mesma forma, eram feitos colocando o cadáver em posição fetal e tingindo-os com ocre vermelho, lembrando o sangue, para que a pessoa fosse devolvida carinhosamente ao ventre da mãe original, a grande Mãe, o chão, a Terra.

Para mim, uma cultura que faz isso não tem nada de primitiva, tem sim uma noção muito linda de cosmologia, de ciclo, de pertencimento.

É relativamente recente um fenômeno entre os acadêmicos que passaram a negar e desacreditar de várias afirmações e descobertas feitas nos anos 60 e 70, relegando achados e símbolos aos planos mitológico ou arquetípico e duvidando até mesmo que em algum momento o ser humano cultuou de fato a Deusa como grande criadora.

Dadas as circunstâncias de nossas vidas, a Terra é muito mais importante do que o Céu, pois Ela dá vida a tudo, e Ela é palpável, tangível. Se há uma Criadora, é sobre Ela que caminhamos todos os dias. Por isso não vejo o paganismo como abstrato. Taí uma divindade que eu posso tocar. E comer, e dormir, e respirar. Aliás, segundo a Hipótese Gaia, a atmosfera é a Mãe respirando!

O Deus masculino das religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo) surge no deserto, da experiência de povos que sofriam a opressão da aridez existente entre o infinito de areia e céu. Não tem verde, não tem vida, não tem água. Por isso, o deles é um Deus estéril, cruel, punitivo, que exige sacrifícios de sangue, se opondo à abundância verdejante e às oferendas de grãos que eram dedicados à Deusa Mãe.

É uma tremenda arrogância da nossa civilização se achar o auge da evolução humana e considerar todas as outras culturas como inferiores, primitivas ou selvagens. E a isso, soma-se a arrogância psicanalítica e a de várias teologias dos últimos dois mil anos que consideram as culturas pagãs como “subdesenvolvidas espiritualmente”, como se as culturas matrifocais e o culto à Terra fossem representativos da “infância da humanidade”.

Primitivos e rudimentares somos nós que até na morte nos apartamos de nossa origem e fazemos da Mãe um elemento a ser dominado, subjugado e, por isso mesmo, estamos abusando da paciência dela e precisamos começar esse papo de “salvar o planeta”, quando na verdade é uma tentativa de salvarmos a todos nós. A Terra, se ficar incomodada de verdade conosco, dá uma única chacoalhada, e babaus. Adeus ser humano. Gosto da hipótese de que não somos a primeira raça e não seremos a última a passar por aqui. Já a Terra, a Mãe, Ela sim pode continuar e se refazer rapidinho depois de nossa extinção.

E nossa civilização segue se referindo ao mundo natural como algo fora de nós, esquecendo que somos animais mamíferos e somos parte dessa natureza.

Lembro de uma índia americana que conheci, Chante é o nome dela, uma senhora de idade, de longos cabelos brancos, muito forte e muito linda. Estávamos eu e ela participando de um mesmo workshop anos atrás, e ela comentou que o branco tinha de parar de sentir culpa, que a culpa estava atrapalhando tudo, porque a culpa continuava nos mantendo separados, e o importante agora era recuperarmos nossa relação direta com o mundo vivo que nos cerca.

É por isso que sinto que o paganismo cresce tanto mundialmente, porque as pessoas estão com sede de conexão, e um retorno ao culto e celebração do nosso entorno, do nosso corpo, dos processos naturais e do nosso planeta chega a ser um alento e oferece uma boa possibilidade de caminho.