
Mulher é um bicho esquisito. Já ouvi isso muitas vezes. Não apenas somos “de lua”, como já ouvi dizerem que é preciso “temer um bicho que sangra três dias sem parar e não morre”. Sem dúvida, só esse motivo já basta para deixar os homens desconfiados desses nossos mistérios do sangue.
Os mistérios da natureza fêmea mamífera humana são muitos. Acrescente-se ao sangramento (que em média varia de 10 a 80 ml por ciclo) o fato de que, em sociedades antigas, quando não havia luz elétrica, as mulheres sangravam todas juntinhas na lua nova. E ficavam todas recolhidas em tendas, segundo alguns relatos que sobreviveram, sangrando sobre a terra ou a palha, porque, afinal, não dá para ficar se locomovendo com sangue escorrendo pelas pernas num período em que ainda não havia nem toalhinhas, nem absorventes, nem ob, nem diva cup. As mulheres cíclicas de então ficavam nessas “tendas vermelhas” e eram atendidas pelas meninas mais novas e pelas mulheres mais velhas, experiências que ainda não chegaram ou que já passaram por essa consonância da lua com o útero. Os homens não visitavam essa redoma protetora. Mais um mistério. Que raios se passava lá dentro? Com todas as mulheres reunidas? E era sempre justo quando a lua sumia do céu que a maioria das mulheres cíclicas parava de circular pela aldeia e ia se enfiar numa cabana para sangrar junto a suas irmãs de tribo.
Digo a maioria porque a sociedade sempre conheceu mulheres do contra, as que tinham o ciclo inverso e sangravam nos dias da lua cheia: as mulheres do Ciclo da Lua Vermelha. Essas não acompanhavam a energia crescente e decrescente da lua com seus úteros,elas circulavam normalmente pela aldeia e ajudavam quando as outras estavam encerradas na tenda vermelha, porém sumiam de circulação justamente na plenitude lunar, quando todos faziam festas para a deusa brilhante da noite, que abençoava afastando a escuridão, exacerbando a sensibilidade, provocando partos, subindo marés e indicando a fertilidade das mulheres que acompanhavam o ciclo da lua branca.
Não pensem que as mulheres “primitivas” não faziam ideia de quando estavam férteis. Não pensem. É subestimar demais nossa capacidade de observação e até mesmo a inteligência corporal animal. Tá certo que os homens estavam ocupadíssimos amarrando umas pedras lascadas nuns pedaços de pau para fazer machadinhas e se reunindo em grupos para derrubar o mamute e garantir o sustento da tribo, mas pressupor que a parcela da espécie que ficava parindo bebês, cuidando de crianças e velhos e desenvolvendo melhorias para a comunidade através de experimentos químicos super complexos como curtir peles e couros, transformar alimentos através do fogo e da cocção e a descoberta de ervas curativas não tinha sequer noção do seu próprio ciclo corporal é um pouco tolo.
Para comprovar isso, taí a Vênus de Laussel, também chamada de “Femme a la corne” um relevo esculpido em calcário ainda no paleolítico, entre 29 e 22 mil anos atrás, que, como tantas outras expressões encontradas dos humanos daquele período da nossa história, retrata uma mulher de medidas exuberantes (ou seja, muito fêmea e redondinha!), sem detalhes de rosto, mas com os seios, as coxas, o ventre e os genitais bem desenhados. Essa, que foi encontrada em uma caverna na França, tem a mão esquerda sobre o ventre, e a direita segurando um objeto em forma de meia-lua ou chifre, com treze marcações, para o qual ela aparenta estar olhando. Uma das interpretações mais comuns feitas pelos estudiosos é de que a figura seja uma deusa da fertilidade ou uma sacerdotisa xamânica, segurando o que seria uma espécie de calendário rudimentar, marcando o número de lunações em um ano. E quem mais tem treze “luas”em um ano? Quem acompanha as lunações com sangramentos mensais? Aí está… A Vênus de Laussel, por ser uma figura feminina que segura essa lua com as treze ranhuras, demonstra claramente que era sabido que a mulher tinha treze sangramentos em um ciclo solar anual. Para reforçar essa ideia, a imagem ainda por cima tem vestígios de ocre vermelho, indicando sangue.
Esse pigmento vermelho, trata-se de um óxido de ferro mineral usado em pinturas e tingimentos, é também encontrado em um número muito grande de sepultamentos e tumbas do período pré-histórico, inclusive no nordeste brasileiro. É notável a quantidade de achados arqueológicos de pessoas enterradas em decúbito lateral (de lado) e posição levemente encolhida, quando não claramente fetal, em diversos continentes da Terra, com seus restos mortais, ossos, ou mesmo fibras que envolviam os corpos cobertos com esse pigmento avermelhado. Uma das interpretações é que esses povos claramente entendiam que, assim como todos viemos de um útero vermelho e nascemos envoltos em sangue, da mesma forma, também nos ritos fúnebres, somos devolvidos envoltos nesse sangue simbólico ao útero da terra, ao útero da natureza, a Grande Mãe, que nos recebe de volta em seu ventre que nos transformará e nos parirá em um outro mundo ou plano existencial.
Se de uma mãe viemos, a uma mãe voltaremos.
A sintonia dos nossos ciclos, mesmo como mulheres modernas usando apps de receitas e vendo séries no netflix, ainda tende a acompanhar a lua, seja em consonância, férteis na lua cheia e sangrando na lua nova, ou expressando a energia oposta. São os chamados Ciclos da Lua Branca e da Lua Vermelha.
Ao longo da vida oscilamos entre os dois, passeando de um ponto ao outro dependendo de como estamos com nossa energia: se mais “maternas” e concordantes com expectativas tradicionais de gênero sobre a passividade e acolhimento femininos (características muito louvadas em nós pela sociedade patriarcal), ou se estamos indo contra a correnteza, tentando criar um novo caminho, testando novas águas solitárias, nos colocando à margem dos papéis prontos e sendo imprevisíveis, amazonas, misteriosas e indomáveis.
É muito interessante observar os movimentos do nosso ventre nesse sentido para entendermos a vontade do corpo e o que ele nos revela sobre a energia que nos interessa *de fato* em cada momento.
Se você não está menstruando nem na lua nova nem na cheia exatamente, é porque seu ciclo está oscilando rumo a uma direção ou outra. Fique atenta para acompanhar para onde ele aponta.
A Vênus de Laussel, do alto de seus 45 cm, nos mostra que sempre soubemos das coisas, o importante é prestar atenção e valorizar a sabedoria que nos pertence desde sempre.
**esse texto nasceu como parte da preparação para o curso Ativando o Caldeirão de Poder Feminino. Para um dia de vivências ritualísticas e papos profundos sobre a essência de nossa natureza cíclica e sacralidade femininas, entre em contato comigo para saber das próximas datas ou organizar uma turma na sua região.