Tag: parteira da morte

Nós que aqui estamos…

Em outubro de 2017, tive a oportunidade de ir a Portugal para participar de um intensivão com o astrólogo Alan Oken. O curso era voltado para uma visão mais espiritual da astrologia, e, enquanto nos levava pelos ensinamentos dos planetas sob essa visão mais esotérica, Alan também nos levava por diferentes cidades daquele país. Foi assim que fui parar em Évora.

Embora haja toda uma mítica sobre a cidade e sua famosa bruxa, não achei nada de bruxaria por lá. Não estou dizendo que não tenha, estou apenas afirmando que não é visível aos olhos e nada fácil de encontrar pelo Google. Chega a ser estranho, pois nem loja mística consegui localizar.

Templo Romano, Évora
Meu desgosto em encontrar o Templo Romano em reforma

No entanto, a atmosfera não deixa de estar ali, e ela é antiga, muito antiga. Évora, que fica no Alentejo, guarda vestígios até hoje de seu passado pré-histórico (Cromeleque dos Almendres, que será tema de outro post), do domínio romano por que passou (vide o Templo Romano de Évora que no período da minha visita estava em restauração, buáaa!), do domínio visigótico e depois mouro,  antes de os cristãos tomarem conta.

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O antigo palácio da inquisição, agora transformado em centro cultural

 

Isso tudo está lá, e se mantém arqueológica e energeticamente nas camadas que compõem o solo da cidade. E como é que se dorme em cima de tudo isso? Muito mal! A energia do centro antigo é super convulsa, foi um alívio sair de lá. Sem contar que fiquei hospedada bem perto do antigo palácio da inquisição! Ai meus deuses!

Uma das visitas mais impactantes é a Capela dos Ossos, que fica na Igreja de São Francisco.

Foi construída no século XVII por iniciativa dos frades franciscanos que queriam ali criar um espaço de meditação sobre a mortalidade e a transitoriedade da vida. O espaço antes já era uma sala de reflexão, e o local realmente não é tão grande, cerca de 200 m2, mas a visão e a experiência são marcantes.

20171025_141700O ambiente é escuro, tem pouca luz natural e algum auxílio de lâmpadas instaladas estrategicamente. Nas paredes e revestindo as colunas, estão cuidadosamente colocadas ossadas e cerca de 5000 caveiras humanas. A abóbada tem pinturas que aludem à morte. Mesmo com um tema tão mórbido, o conjunto é de uma beleza poética ímpar e tem sobre os visitantes o efeito que almejavam os frades.

 

Os ossos ali vêm de 42 cemitérios que existiam na cidade no século XVI, e é difícil não lembrar do arcano XIII do Tarô, a carta da Morte, que na sua amorosidade eterna nos colhe ao final do ciclo, igualando a todos. Ela é a democracia em si, não diferencia ninguém, e dela ninguém escapa, nem reis, nem sacerdotes, nem mendigos. É ela quem nos torna verdadeiramente humanos e nos faz valorizar a jornada.

20171025_141211Ao chegarmos somos saudados com o aviso: “Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”. E é isso mesmo. Um dia todos chegaremos lá, não na capela de Évora, mas nossa fragilidade física será vencida na nossa hora, e seremos devolvidos e reduzidos aos minerais que nos compõem. E cabe a nós, dentro dessa brevidade da vida humana, nos lembrarmos constantemente da preciosidade que é ter um corpo vivo que respira, pulsa e vibra.

Feliz Samhain!!!

 

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O que faz uma Parteira ou Doula da Morte?

Muitas vezes encontro pessoas amigas ou até desconhecidas e me pego falando sobre a morte. É um assunto natural para mim, mas parece que nessa nossa louca sociedade onde tudo é voltado ao crescimento, ao progresso, à juventude e ao sucesso, a morte é um assunto que exige uma certa coragem e qualidade psíquica para que a pessoa se sinta tranquila de abordar.

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Oferecendo um quintú de coca em um cone funerário nos arredores de Puno, Peru.

Já percebi que é sempre mais fácil falar do assunto com quem já viu essa dama bem de perto ou acompanhou a gentil senhora levar embora alguém muito querido seu. Já percebi também que é muitas vezes mais fácil tocar no assunto com quem ainda não passou dos sessenta.

Mas é um assunto do qual não adianta fugir. Aliás, podemos fugir o quanto quisermos do assunto. Já dela,  impossível! A grande verdade é que ninguém sai daqui vivo.

Evitar falar da morte tem efeitos colaterais nocivos para nossa sociedade

Algumas semanas atrás, passei a tarde engarrafando hidromel. Uma amiga muito querida veio me ajudar, e, em nosso intervalo para o almoço, o assunto foi cuidados paliativos, trabalho em hospice care e escolhas para a morte. Numa terça-feira fria, mas de sol, comendo um couscous marroquino no quintal, pode parecer um assunto mórbido, como em determinado momento me ocorreu. Mas quão melhor seria nossa sociedade se tivéssemos naturalidade para abordar o fim da vida?

Essa ideia de que falar na morte a atrai, de que a morte é algo temerário, ruim, que precisa ser evitado de qualquer jeito tem um custo altíssimo para nossa sociedade e nossa saúde psíquica e emocional.

Primeiro, evitar a morte é evitar o fim, a decomposição o término. Não sabemos lidar com o fim de nada, adoramos falar só em começos, em iniciativas, em progresso. Só queremos começar relações, começar um novo emprego, construir, comprar, expandir.

A natureza não funciona assim, tudo ao nosso redor tem ciclos que envolvem uma decadência e então um término. Mas nós só pensamos em criar! Inventamos apetrechos maravilhosos sem levar em conta como aquele apetrecho vai se decompor depois e retornar à natureza. O resultado é que nos encontramos entulhados de lixo de longuíssima decomposição que não sabemos onde enfiar, pois do ponto de vista do planeta, não existe “jogar fora”. Temos um continente de lixo flutuando perto da Austrália, temos animais marinhos engolindo plástico, temos solo e águas poluídas à exaustão. Tudo porque nós não pensamos no fim daquilo que criamos, embora a Mãe Natureza nos tenha demonstrado sua infindável sabedoria em ter tudo planejado: do começo ao final, com 100% de reaproveitamento  de absolutamente tudo.

Nossa negação da morte, nosso medo, nos leva a entregar nossos entes queridos na mão de estranhos no hospital e na indústria funerária, por não querermos ver, não querermos tocar, não querermos lidar com aquilo. Pessoas que amamos são abandonadas por nós porque não sabemos o que fazer com uma passagem, com aquilo que foi e não é mais.

E nossos sentimentos são reprimidos e jogados para os recônditos do inconsciente. O luto não vivido ressurge depois em ataques de pânico, paranoias, fobias e outros distúrbios que atrapalham nossa paz e nossas relações.

O último suspiro

something-beautiful-has-diedEm 2006 eu tive a honra de estar presente no quarto de hospital quando minha avó paterna deu seu último suspiro. Foi uma experiência que mudou minha vida. Estar presente na morte de alguém é um momento profundamente sagrado, que alarga nossa percepção e visão de mundo dali para frente. Não há como ser diferente. E a morte é um momento muito íntimo.

Aquilo mexeu tanto comigo que, quando fui ao Pagan Spirit Gathering daquele ano, em junho, conheci Nora Cedarwing Young e fui ao workshop dela sobre “Escolhas de fim de vida”. Ela é uma mulher incrível, fundadora do Thresholds of Life (Limiares da Vida) e uma pioneira nos EUA no trabalho de Parteira da Morte.

Saí dali pensando sobre a minha e sobre como faz parte da vida falar a respeito, pensar no que queremos quando nossa hora chegar e do que podemos fazer para confortar quem amamos ao testemunhar os últimos momentos deles na Terra. Isso vai desde opções como cremação e doação de órgãos, até quem queremos por perto, que tipos de tratamentos aceitamos que os médicos usem se não pudermos responder por nós mesmos, estando inconsciente em um hospital, além do que podemos dizer ou fazer pelos outros quando estamos testemunhando uma despedida.

Depois acompanhei, animada, esse movimento ganhar fôlego no meio pagão e fora dele, e vi vários amigos meus receberem seus certificados de Death Midwife, Parteira da Morte, pois assim como uma Parteira nos ajuda a chegar a este mundo, quando viemos do desconhecido para cá, uma Parteira da Morte nos ajuda a cruzar amorosamente ao atravessamos o limiar deste plano de volta para o outro.

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Ano passado, consegui eu também fazer a minha formação neste trabalho que é tão humano, ancestral e necessário, com o curso oferecido pela Earth Traditions através da competência amorosa e firme da sacerdotisa Angie Buchanan. É uma formação secular, sem ligação com qualquer denominação religiosa. É um trabalho puramente humano e compassivo.

Da mesma forma que estamos resgatando o parto, humanizando, diminuindo o número de cesarianas, trocando o ambiente hospitalar pelas nossas casas quando tudo corre bem, para retomarmos a forma que paríamos antigamente, também há um movimento de resgate da morte, da possibilidade de velórios em casa, ou de cerimônias alternativas para celebrar nossos familiares e amigos que se foram ou estão de partida, de encontrar formas mais amorosas de nos despedirmos sem dar as costas para um momento tão sagrado quanto aquele da chegada neste mundo.

Quando nascemos somos esperados, com enxovais e mãos carinhosas de tias, avôs, amigos, madrinhas, que querem nos alisar, segurar, elogiar, encher de beijos. Ao morrermos, somos abandonados, porque esquecemos de como lidar com a partida e tudo que se desmancha, por medo, insegurança e falta de jeito. Os carinhos, palavras e beijos são substituídos apenas pelas mãos amorosas de profissionais de saúde, quando damos sorte de encontrá-las.

O que faz uma parteira da morte?

img_20151123_121952210Parteiras ou doulas da morte também são conhecidas em algumas regiões dos EUA e Inglaterra como Home Funeral Guides, e são pessoas preparadas para apoiar,  em questões práticas, espirituais e emocionais, tanto as famílias como a pessoa que está morrendo

Conversamos com as famílias e a pessoa para expor opções (estilos de funeral, enterro, cremação, o que fazer com as cinzas), ajudamos a organizar a preparação de documentos (testamentos, testamento vital, diretrizes avançadas, declaração de vontade, procurações), fazemos vigílias, organizamos memoriais e cerimônias, lemos histórias, aplicamos técnicas holísticas para trazer conforto e alívio, criando um ambiente amoroso e facilitando a comunicação entre todos os envolvidos.

Não somos da área médica e não fazemos serviço de enfermagem ou tarefas normalmente da alçada dos cuidadores. Trabalhamos como acompanhantes holísticas, orientando a pessoa que está morrendo a fim de facilitar uma passagem tranquila e suave, reconhecendo suas necessidades individuais e criando um ambiente sagrado e reconfortante para ela, seja num hospital, clínica ou em casa.

Trabalhamos sem qualquer denominação religiosa, adaptando nossos serviços para respeitar a fé e as crenças da pessoa sobre a vida e o que existe além dela.

Apoiamos as famílias e amigos com elementos humanizados e reconfortantes num momento difícil, enquanto oferecemos tranquilidade auxiliando a pessoa que está morrendo para que vivencie a morte que ele ou ela deseja.

Falar sobre essas escolhas e o que desejamos é das coisas mais importantes que a família e os amigos podem fazer para se preparar para o fim da vida. Não vamos deixar que quem a gente ama seja pego de surpresa, sem fazer a menor ideia de nossos desejos, piorando a experiência da dor da perda ao acrescentar o medo de não estarem fazendo a escolha certa para nós. Embora sempre difícil e doloroso, o fim da vida pode sim ser muito rico. O aprendizado, as trocas, as epifanias e o amor ocorrem até o último suspiro e se perpetuam além. Tocar no assunto com coragem e naturalidade tem grandes chances de enriquecer essa experiência que é parte da vida de todos.

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