Estou finalmente lendo o clássico: The Great Cosmic Mother, Rediscovering the Religion of the Earth, escrito por Monica Sjöö e Barbara Mor, uma das grandes (também em número de páginas) obras que ajudam a entender melhor as origens do culto ao divino feminino e suas raízes ancestrais na experiência espiritual – e biológica – dos seres humanos.
Cada página traz informações relevantes, algumas são novas, mas na maioria, elas são, para mim, reafirmações e revalidações de outras, apanhadas em palestras, leituras e sacações daqui e dali. Já li muitos outros livros que inclusive citavam este em sua bibliografia, ou seja, é meio fonte de vários dos pensamentos e ideias que circulam nos meios pagãos.
Eu mesma levei muito tempo para me entender e me gostar sendo mulher. Demorei a apreciar o universo e força do feminino. Cresci envelopada numa cultura mega patriarcal gaúcha e comprei bonito todos os ideais de competência, competitividade, força e rigidez do mundo masculino. Considerava minhas emoções uma fraqueza e reprimia boa parte delas, inclusive as ligadas a demonstração de afeto e abertura para criação de vínculos afetivos. Não é por menos que, para poder me reequilibrar, fiz biodança, bioenergética, terapia junguiana, rodas de cura xamânica e precisei virar atriz! O paganismo, mais voltado no meu caso para a celebração da Deusa, foi a cereja do bolo nesse meu processo de busca de valorização pessoal e entendimento do meu papel no mundo.
Mas é difícil mesmo superarmos tantas ideias já ultrapassadas que seguem agindo dentro de nós por estarem entranhadas na cultura e quiçá até em algum código genético que passamos de pais para filhos.
Por isso sempre vale lembrar que embora sejamos maioria em número, as mulheres ainda precisem ser tratadas com o status de minoria e terem órgãos de defesa, leis específicas e até um Dia Internacional para que consigam valer seus direitos – mínimos às vezes, dependendo de onde nos encontremos no nosso querido globo terrestre.
Globo terrestre, aliás, que é fêmea, enquanto Gaia (louvados sejam os cientistas James Lovelock e Lynn Margulis), com um oceano, que é feminino, inclusive segundo Darwin, de onde emergiu a vida. Ponto.
E ainda bem que agora também temos até o lance do DNA mitocondrial, que rastreia nossa origem até às primeiras mulheres africanas de onde todos nós viemos. E o DNA mitocondrial que pode ser rastreado, mesmo no homem, é dado a ele pela mãe, ou seja, pela linhagem feminina. Finalmente a ciência volta a reconhecer, em termos genéticos e biológicos, algo que já vivemos como espécie muito antigamente, durante as culturas matrilineares, e que os judeus ainda preservam até hoje: o conhecimento de que a mulher é quem transmite uma linhagem.
Como do paleolítico e do neolítico só restaram as pontas de flecha, de lança e outras ferramentas como martelos e enxadas primitivas, que podem ser expostos em museus, em geral é esquecido que o papel da mulher naquele mesmo período foi de fundamental importância para toda a evolução da humanidade. Enquanto os homens amarravam uma pedra num pedaço de pau e saíam para caçar, as mulheres estavam tecendo, fazendo cerâmica e aprendendo leis da química e da física através do ato de cozinhar, curtir o couro e descobrir plantas curativas.
Não estou menosprezando de maneira alguma o papel do homem, estou apenas buscando elevar e lembrar da importância do papel da mulher para várias das conquistas da nossa civilização humana. Pode parecer redundante, mas precisamos nos lembrar disso, porque a gente ainda esquece, e as mulheres seguem se diminuindo e se sentindo menos em várias instâncias que vejo por aí.
A arqueologia demonstra que os primeiros trinta mil anos do homo sapiens foram dominados pela celebração dos processos do feminino: menstruação, gravidez, dar a luz – tudo sempre ligado aos ciclos de fertilidade da terra também. Os ritos funerários, da mesma forma, eram feitos colocando o cadáver em posição fetal e tingindo-os com ocre vermelho, lembrando o sangue, para que a pessoa fosse devolvida carinhosamente ao ventre da mãe original, a grande Mãe, o chão, a Terra.
Para mim, uma cultura que faz isso não tem nada de primitiva, tem sim uma noção muito linda de cosmologia, de ciclo, de pertencimento.
É relativamente recente um fenômeno entre os acadêmicos que passaram a negar e desacreditar de várias afirmações e descobertas feitas nos anos 60 e 70, relegando achados e símbolos aos planos mitológico ou arquetípico e duvidando até mesmo que em algum momento o ser humano cultuou de fato a Deusa como grande criadora.
Dadas as circunstâncias de nossas vidas, a Terra é muito mais importante do que o Céu, pois Ela dá vida a tudo, e Ela é palpável, tangível. Se há uma Criadora, é sobre Ela que caminhamos todos os dias. Por isso não vejo o paganismo como abstrato. Taí uma divindade que eu posso tocar. E comer, e dormir, e respirar. Aliás, segundo a Hipótese Gaia, a atmosfera é a Mãe respirando!
O Deus masculino das religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo) surge no deserto, da experiência de povos que sofriam a opressão da aridez existente entre o infinito de areia e céu. Não tem verde, não tem vida, não tem água. Por isso, o deles é um Deus estéril, cruel, punitivo, que exige sacrifícios de sangue, se opondo à abundância verdejante e às oferendas de grãos que eram dedicados à Deusa Mãe.
É uma tremenda arrogância da nossa civilização se achar o auge da evolução humana e considerar todas as outras culturas como inferiores, primitivas ou selvagens. E a isso, soma-se a arrogância psicanalítica e a de várias teologias dos últimos dois mil anos que consideram as culturas pagãs como “subdesenvolvidas espiritualmente”, como se as culturas matrifocais e o culto à Terra fossem representativos da “infância da humanidade”.
Primitivos e rudimentares somos nós que até na morte nos apartamos de nossa origem e fazemos da Mãe um elemento a ser dominado, subjugado e, por isso mesmo, estamos abusando da paciência dela e precisamos começar esse papo de “salvar o planeta”, quando na verdade é uma tentativa de salvarmos a todos nós. A Terra, se ficar incomodada de verdade conosco, dá uma única chacoalhada, e babaus. Adeus ser humano. Gosto da hipótese de que não somos a primeira raça e não seremos a última a passar por aqui. Já a Terra, a Mãe, Ela sim pode continuar e se refazer rapidinho depois de nossa extinção.
E nossa civilização segue se referindo ao mundo natural como algo fora de nós, esquecendo que somos animais mamíferos e somos parte dessa natureza.
Lembro de uma índia americana que conheci, Chante é o nome dela, uma senhora de idade, de longos cabelos brancos, muito forte e muito linda. Estávamos eu e ela participando de um mesmo workshop anos atrás, e ela comentou que o branco tinha de parar de sentir culpa, que a culpa estava atrapalhando tudo, porque a culpa continuava nos mantendo separados, e o importante agora era recuperarmos nossa relação direta com o mundo vivo que nos cerca.
É por isso que sinto que o paganismo cresce tanto mundialmente, porque as pessoas estão com sede de conexão, e um retorno ao culto e celebração do nosso entorno, do nosso corpo, dos processos naturais e do nosso planeta chega a ser um alento e oferece uma boa possibilidade de caminho.