O que faz uma Parteira ou Doula da Morte?

Muitas vezes encontro pessoas amigas ou até desconhecidas e me pego falando sobre a morte. É um assunto natural para mim, mas parece que nessa nossa louca sociedade onde tudo é voltado ao crescimento, ao progresso, à juventude e ao sucesso, a morte é um assunto que exige uma certa coragem e qualidade psíquica para que a pessoa se sinta tranquila de abordar.

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Oferecendo um quintú de coca em um cone funerário nos arredores de Puno, Peru.

Já percebi que é sempre mais fácil falar do assunto com quem já viu essa dama bem de perto ou acompanhou a gentil senhora levar embora alguém muito querido seu. Já percebi também que é muitas vezes mais fácil tocar no assunto com quem ainda não passou dos sessenta.

Mas é um assunto do qual não adianta fugir. Aliás, podemos fugir o quanto quisermos do assunto. Já dela,  impossível! A grande verdade é que ninguém sai daqui vivo.

Evitar falar da morte tem efeitos colaterais nocivos para nossa sociedade

Algumas semanas atrás, passei a tarde engarrafando hidromel. Uma amiga muito querida veio me ajudar, e, em nosso intervalo para o almoço, o assunto foi cuidados paliativos, trabalho em hospice care e escolhas para a morte. Numa terça-feira fria, mas de sol, comendo um couscous marroquino no quintal, pode parecer um assunto mórbido, como em determinado momento me ocorreu. Mas quão melhor seria nossa sociedade se tivéssemos naturalidade para abordar o fim da vida?

Essa ideia de que falar na morte a atrai, de que a morte é algo temerário, ruim, que precisa ser evitado de qualquer jeito tem um custo altíssimo para nossa sociedade e nossa saúde psíquica e emocional.

Primeiro, evitar a morte é evitar o fim, a decomposição o término. Não sabemos lidar com o fim de nada, adoramos falar só em começos, em iniciativas, em progresso. Só queremos começar relações, começar um novo emprego, construir, comprar, expandir.

A natureza não funciona assim, tudo ao nosso redor tem ciclos que envolvem uma decadência e então um término. Mas nós só pensamos em criar! Inventamos apetrechos maravilhosos sem levar em conta como aquele apetrecho vai se decompor depois e retornar à natureza. O resultado é que nos encontramos entulhados de lixo de longuíssima decomposição que não sabemos onde enfiar, pois do ponto de vista do planeta, não existe “jogar fora”. Temos um continente de lixo flutuando perto da Austrália, temos animais marinhos engolindo plástico, temos solo e águas poluídas à exaustão. Tudo porque nós não pensamos no fim daquilo que criamos, embora a Mãe Natureza nos tenha demonstrado sua infindável sabedoria em ter tudo planejado: do começo ao final, com 100% de reaproveitamento  de absolutamente tudo.

Nossa negação da morte, nosso medo, nos leva a entregar nossos entes queridos na mão de estranhos no hospital e na indústria funerária, por não querermos ver, não querermos tocar, não querermos lidar com aquilo. Pessoas que amamos são abandonadas por nós porque não sabemos o que fazer com uma passagem, com aquilo que foi e não é mais.

E nossos sentimentos são reprimidos e jogados para os recônditos do inconsciente. O luto não vivido ressurge depois em ataques de pânico, paranoias, fobias e outros distúrbios que atrapalham nossa paz e nossas relações.

O último suspiro

something-beautiful-has-diedEm 2006 eu tive a honra de estar presente no quarto de hospital quando minha avó paterna deu seu último suspiro. Foi uma experiência que mudou minha vida. Estar presente na morte de alguém é um momento profundamente sagrado, que alarga nossa percepção e visão de mundo dali para frente. Não há como ser diferente. E a morte é um momento muito íntimo.

Aquilo mexeu tanto comigo que, quando fui ao Pagan Spirit Gathering daquele ano, em junho, conheci Nora Cedarwing Young e fui ao workshop dela sobre “Escolhas de fim de vida”. Ela é uma mulher incrível, fundadora do Thresholds of Life (Limiares da Vida) e uma pioneira nos EUA no trabalho de Parteira da Morte.

Saí dali pensando sobre a minha e sobre como faz parte da vida falar a respeito, pensar no que queremos quando nossa hora chegar e do que podemos fazer para confortar quem amamos ao testemunhar os últimos momentos deles na Terra. Isso vai desde opções como cremação e doação de órgãos, até quem queremos por perto, que tipos de tratamentos aceitamos que os médicos usem se não pudermos responder por nós mesmos, estando inconsciente em um hospital, além do que podemos dizer ou fazer pelos outros quando estamos testemunhando uma despedida.

Depois acompanhei, animada, esse movimento ganhar fôlego no meio pagão e fora dele, e vi vários amigos meus receberem seus certificados de Death Midwife, Parteira da Morte, pois assim como uma Parteira nos ajuda a chegar a este mundo, quando viemos do desconhecido para cá, uma Parteira da Morte nos ajuda a cruzar amorosamente ao atravessamos o limiar deste plano de volta para o outro.

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Ano passado, consegui eu também fazer a minha formação neste trabalho que é tão humano, ancestral e necessário, com o curso oferecido pela Earth Traditions através da competência amorosa e firme da sacerdotisa Angie Buchanan. É uma formação secular, sem ligação com qualquer denominação religiosa. É um trabalho puramente humano e compassivo.

Da mesma forma que estamos resgatando o parto, humanizando, diminuindo o número de cesarianas, trocando o ambiente hospitalar pelas nossas casas quando tudo corre bem, para retomarmos a forma que paríamos antigamente, também há um movimento de resgate da morte, da possibilidade de velórios em casa, ou de cerimônias alternativas para celebrar nossos familiares e amigos que se foram ou estão de partida, de encontrar formas mais amorosas de nos despedirmos sem dar as costas para um momento tão sagrado quanto aquele da chegada neste mundo.

Quando nascemos somos esperados, com enxovais e mãos carinhosas de tias, avôs, amigos, madrinhas, que querem nos alisar, segurar, elogiar, encher de beijos. Ao morrermos, somos abandonados, porque esquecemos de como lidar com a partida e tudo que se desmancha, por medo, insegurança e falta de jeito. Os carinhos, palavras e beijos são substituídos apenas pelas mãos amorosas de profissionais de saúde, quando damos sorte de encontrá-las.

O que faz uma parteira da morte?

img_20151123_121952210Parteiras ou doulas da morte também são conhecidas em algumas regiões dos EUA e Inglaterra como Home Funeral Guides, e são pessoas preparadas para apoiar,  em questões práticas, espirituais e emocionais, tanto as famílias como a pessoa que está morrendo

Conversamos com as famílias e a pessoa para expor opções (estilos de funeral, enterro, cremação, o que fazer com as cinzas), ajudamos a organizar a preparação de documentos (testamentos, testamento vital, diretrizes avançadas, declaração de vontade, procurações), fazemos vigílias, organizamos memoriais e cerimônias, lemos histórias, aplicamos técnicas holísticas para trazer conforto e alívio, criando um ambiente amoroso e facilitando a comunicação entre todos os envolvidos.

Não somos da área médica e não fazemos serviço de enfermagem ou tarefas normalmente da alçada dos cuidadores. Trabalhamos como acompanhantes holísticas, orientando a pessoa que está morrendo a fim de facilitar uma passagem tranquila e suave, reconhecendo suas necessidades individuais e criando um ambiente sagrado e reconfortante para ela, seja num hospital, clínica ou em casa.

Trabalhamos sem qualquer denominação religiosa, adaptando nossos serviços para respeitar a fé e as crenças da pessoa sobre a vida e o que existe além dela.

Apoiamos as famílias e amigos com elementos humanizados e reconfortantes num momento difícil, enquanto oferecemos tranquilidade auxiliando a pessoa que está morrendo para que vivencie a morte que ele ou ela deseja.

Falar sobre essas escolhas e o que desejamos é das coisas mais importantes que a família e os amigos podem fazer para se preparar para o fim da vida. Não vamos deixar que quem a gente ama seja pego de surpresa, sem fazer a menor ideia de nossos desejos, piorando a experiência da dor da perda ao acrescentar o medo de não estarem fazendo a escolha certa para nós. Embora sempre difícil e doloroso, o fim da vida pode sim ser muito rico. O aprendizado, as trocas, as epifanias e o amor ocorrem até o último suspiro e se perpetuam além. Tocar no assunto com coragem e naturalidade tem grandes chances de enriquecer essa experiência que é parte da vida de todos.

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9 comentários sobre “O que faz uma Parteira ou Doula da Morte?

  1. Olá Petrucia. Ouvi sua entrevsta hj na rádio bandeirantes porto alegre. Não conhecia nem a palavra doula da morte então fui pesquisar no seu blog. Recentemente (entre outubro e novembro de 2018) perdi minha mãe. Fiquei um mês vendo ela definhar aos pouquinhos (praticamente eu e ela). Fiquei junto dela segurando a mão no último segundo. Sempre vivi perto dela. ainda não sei dizer direito o que isto alterou minha vida..mas acho que em tudo o que penso e faço…Segurar a mão de quem amamos no momento final muda tudo o que se pensa sobre a vida e sobre a morte. No começo tentei entender o que acontece com a alma…e depois o verdadeiro, o que acontece com o corpo. Hoje eu uso as roupas que gosto o dia todo e não guardo mais nada. Bebo vinho na taça de cristal. Corro todo o final do dia com minhas cachorrinhas pelo pátio. Tenho raiva, passei a dizer não com mais facilidade para coisas que não quero fazer, mas também tenho muito mais amor. Tenho maior dedicação com quem eu amo, meu filho, meu marido, meu pai.
    Parabéns pelo teu trabalho. A gente vive a vida pensando no que vamos fazer, em ter em ser, mas ela acaba. Minha mãe guardava tudo e não usava as melhores coisas…não levou nada a não ser os momentos em que passamos juntas e que recordamos durante o mês…ficar com ela foi a coisa mais amorosa que já fiz na vida e que podemos fazer com quem amamos.

    1. Simone, que lindo teu relato! É isso mesmo, a morte nos faz valorizar a vida. Corra muito com suas cachorras, expresse seus sentimentos, use seus melhores perfumes, estamos aqui para viver com plenitude da forma que nos for possível. A dor da perda não some, e há uma beleza e uma honra em conviver e ter convivido com quem amamos. Abraçar essa realidade como parte do ciclo da vida é uma benção. Um forte abraço pra você.

  2. Muito bom o texto… Conheci o blog ( e você) através do vídeo no canal do Via Paganus, e com certeza vou acompanhar o seu trabalho!!! Blessed be!

  3. Oi, Bom dia! Tive um sonho essa noite e vim aqui na internet buscar sobre o tema, fiquei feliz de saber que vc escreveu esse texto há poucos dias. Como faço para saber mais sobre o tema? Vc poderia me ajudar com algumas indicações?
    Parabéns pelo trabalho
    Obrigada!

    1. oi Vitória,em português o tema é novo, mas você pode achar material sobre o assunto buscando por death midwife no google. Tem algumas pessoas no Brasil que trabalham lindamente com hospice care, que é o cuidado com pacientes terminais, você pode dar uma olhada nisso.
      Vou trazer em 2017 a americana que dá essa formação como doula da morte, fica atenta aqui no blog que vou avisar sobre isso. Beijos (deve ser por Setembro, mas vou avisar bem antes pois a formação é cara e quem se interessar vai precisar se organizar para isso)

      1. Ola Petrucia, tudo bem?
        Esatava eu no meu horario de almoço e essa ideia me ocorreu, foi assim que cheguei ate voce. Realmente esse tema é muito novo no Brasil. A pessoa virá ao Brasil para dar o curso de formaçao? Quando? Espero que ainda venha, nao consegui achar por aqui.
        Forte abraço
        Ana

      2. oi Ana!
        A Angie Buchanan que dá essa formação não vem mais. O valor seria impraticável para a vinda dela, o curso ficaria caro demais com todas as despesas e o que ela cobra, acabei desistindo. Vou ver se eu faço mais alguma preparação com orientação dela para poder passar esse conhecimento adiante.
        Um abraço pra você!

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